quantos indecisos andam agora por aqui

Sunday, January 06, 2008

Crónicas de sábado à noite

Hoje apetecia-me ver um filme qualquer, de preferência um daqueles clássicos que são transmitidos em épocas festivas, principalmente no natal. Lembro-me da Mary Poppins e do Sozinho em Casa, do Música no Coração e de todos esses filmes cheios de ternura e lições de vida. Apetecia-me qualquer coisa como um Hitchcock ou um Brian De Palma e recostar-me no sofá, sabendo que tenho todo o tempo do mundo. Não quero mais nada que me faça lembrar o natal, obrigado.
Lembro-me de ter visto o Dressed to kill quando tinha uns seis anos. Por vezes tenho memórias que aparecem, como se surgissem do nada [será que é mesmo daí que elas vêm?] e fico a pensar e a tentar recordar-me de mais coisas. Mas lembranças destas apenas tenho muito de vez em quando e são completamente aleatórias, parece-me. Não é um filme que se veja com essa idade, mas ao que parece estava sozinha na sala e tinha aprendido os números. Carreguei num qualquer e estava a dar uma das cenas mais assustadoras do filme, que ainda hoje me faz estremecer. Uma mulher no duche, um barulho estranho, ela pára e espreita e vê um sapato no corredor, é uma armadilha, sei-o hoje, e eu fecho um dos olhos, como se isso pudesse parar o medo. Não vi o resto, quando tinha seis anos, porque a minha tia chegou a tempo de desligar a televisão e dizer que aquilo não era filme para a minha idade. A minha mãe continua a dizer isso dos filmes de terror que alugo quando vou a casa.
Tenho comigo uma ligeira sensação de jet lag que se entranhou no meu organismo desde que cheguei, anteontem. Não, não é possível, não atravessei o meridiano nem mudei de fuso horário. Apenas subi a encosta, por entre o litoral rendilhado que vejo no mapa. No entanto, parece que estou noutro sítio qualquer. Talvez o tempo tenha passado demasiado rápido, só isso.
Estou quase a terminar o curso, é natural que a nostalgia apareça. Quando era pequena, talvez antes dos sete anos, tinha um medo mórbido de me perder. Passeava em Lisboa com os meus pais e estava constantemente a agarrar-me às suas mãos quentes, com as minhas frias, por causa daquelas nuvens cinzentas, pensava eu. Lembro-me de parar para ver uma montra, [um brinquedo, um jogo ou um livro] e de levantar os olhos e não ver ninguém ao meu lado. Consigo sentir aquilo que senti outrora, o estômago a cair, como se eu própria tivesse caído de um precipício. Suor nas mãos e lágrimas nos olhos. Como sempre os meus pais não estavam longe, tinham caminhado apenas alguns passos para ver uma outra montra.
Nunca lhes contei esse meu pânico. Lembro-me de o ter contado a uma tia, “Tenho medo de me perder e de nunca mais encontrar o caminho para casa”, [talvez tenha sido um filme que vi, porque tenho lembranças de uma cena de um filme em que um rapaz se perdeu numa floresta e nunca mais regressou], e ela riu-se. Fiquei magoada, mas ri-me também, como se não fosse nada de especial.
O meu medo levava-me a abominar os longos passeios pela baixa e o estar longe do calor dos meus pais. Aos seis anos, quando me quiseram deixar no infantário pela primeira vez, um sítio bonito e de paredes amarelas [hoje em dia detesto o amarelo], chorei e fiz birra pela primeira vez na vida. Aos seis anos. Nunca o tinha feito, nem sequer para ter os presentes que queria no natal ou nos aniversários.
Hoje adoro longos passeios pela baixa de Lisboa, mas não vou lá há muito tempo, desde que se perdeu a tradição de visitar os alfarrabistas antes do Natal, com os amigos, e de comprarmos prendas uns para os outros a poucos metros de distância das pessoas a quem os íamos oferecer. Já não tenho medo de me perder, porque agora sei ler e consigo decifrar mapas, e já me consigo afastar do calor dos meus pais, e tenho que dividir esse calor com o meu irmão, que precisa mais dele, e estou longe e sei cuidar de mim.
Agora passeio pela baixa do Porto, como hoje o fiz, em boa companhia. Por vezes gosto de o fazer sozinha. Como os filmes… por vezes só, por vezes em boa companhia. Estava frio e chovia, o nevoeiro quase cerrado caía como um estranho lençol e o meu guarda-chuva vacilava com o vento. O Popito já voltou para a Polónia, por isso não o pude desafiar para ir a uma feira de livros, mas acabei por ir lá na mesma porque senti que todas aquelas palavras em páginas chamavam por mim.
Gosto de ver os vendedores de castanhas nas esquinas. O fumo que sai das suas carroças mistura-se com o nevoeiro e o cheiro a queimado e casca de castanha em brasa chega-me ao nariz. Já há menos pessoas na rua, o Natal já se foi e provavelmente estão todos fartos das compras, apesar dos saldos já terem começado. Uma e outra cara conhecida, uma amiga que não via há muito, a minha lista de compras escapou-se do bolso e voou para uma poça de água lamacenta e eu suspirei de alívio, que bom, assim já posso comprar o que quero!

Queria ver um filme, mas mais uma vez a sala está ocupada e não me apetece ir para a sala de jantar, junto à cozinha porque está muito frio. Aqui no quarto está tanto calor, por causa do aquecimento, que tive de abrir a janela para sentir a brisa no cabelo. Gostava que a janela não fosse daquelas que não abre completamente, apenas se puxa uma parte, por isso não me posso debruçar para sentir as gotas de chuva. De vez em quando algumas pombas pousam no parapeito e espreitam para dentro, ainda bem que parei de deixar migalhas ali, porque elas não paravam de me acordar de manhã, ao bater nos estores a pedir mais pedacinhos de pão seco. Gosto de pombas, a minha mãe diz que dão sorte quando pousam no parapeito, mas eu não acredito muito nisso, e sem querer debruço-me e quase entorno o chocolate quente no teclado do computador, tenho tanto azar com estas coisas, foi o cappuccino por cima do ipod na primeira semana de uso e o leite com chocolate por cima do telemóvel nos dias em que mais precisava dele.

Segunda-feira há exame, mas as folhas de apontamentos empilham-se na secretária, preguiçosamente olhando para mim e eu preguiçosamente olhando para elas. Leio uma a uma, tão lentamente que diria que metade do meu cérebro se desligou sem eu dar por isso.
Faço pausas e pausas, para ver gente, para reencontrar amigos e repetir o mesmo “Sim, o Natal foi bom, o Ano Novo foi divertido, sim tenho exames e tu? E trabalhos, alguns trabalhos que atrapalham, e não, não posso ir hoje ao café, sim eu sei que é sábado à noite, mas não, não posso, o estudo vai lento e ainda tenho que arrumar tanta coisa!”; gosto de ver pessoas, mas não hoje. Gosto de conversar mas hoje não tenho tempo nem me apetece.
Apetecer, apetecer, apetecia-me ver um filme e aconchegar-me e talvez adormecer. E a chuva continua, lá fora.
"Happiness is a sad song..."


9 comments:

Anonymous said...

Como sempre, escrita magnífica, estás a ficar perita em escritas cativantes. Gosto tanto disso. Vou deixar de fumar e ficar viciado na tua escrita.

Anonymous said...

O natal também cansa. Assim como a infância. Welcome to adulthood.

farfalla said...

luna!!!!! já tinha saudades de te ler!! BOM ANO!!! ;)

as belas divagações de final de natal.. triste mas é verdade... esta altura deixa-nos sp mais nostálgicos.... e essa nostalgia traduz.se em textos como este... que sabem bem em dias de chuva, trabalhos por fazer e estudo atrasado =)

_baci_

Kokas said...

Bela crónica! Gostei particularmente do segredo. Os nossos medos às vezes são estranhos. Ganham formas e dimensões também estranhas. Somos nós que os alimentamos, dizem...

Sabes que eu tinha medo de dormir e nunca mais acordar?

Aquele beijinho!

m said...

Adorei! Muito pessoal, muito expressiva. O medo da solidão é o que me assusta!

Boa sorte para os exames.
Beijinhos :)

Kokas said...

E que tal juntarmos as festas para uma noite 70s & 80s inesquecível?? ;)

Carlos said...

Olá,

É delicioso ,ler teus escritos.
Desculpa se me repito,mas eu com mais, umas luas do que tu, sinto tudo isso... as tuas nostalgias , comungo tb de alguns receios e de algumas loucuras ...
eu entendo o quanto é dificil sentir essa sensação de quase jet lag,
mas embora Sintra ( também para mim tem uma magia ) no Porto podes encontrar coisas diferentes mas aconchegantes.
quando chega o tempo dos vendedores de castanhas, hum! nem imaginas a sensação q me toca , não consigo , talvez expressar por simples palavras...
deixa sempre pelo resto da tua vida que a chuva te toque em suaves acordes, e deixa teus cabelos flutuar ao sabor do vento....
já me alonguei, desculpa , tantas coisas me assaltam,mas nem imaginas como me sinto «Happy »quando sinto jovens como tu a vibrarem em emoções.

já agora q te corra bem o exame.

fica bem,

big Hug

.diana.alves. said...

Oh, gosto tanto de vir aqui e ler o que escreves:) Como ao que já me habituei, é mais uma óptima "brincadeira" de palavras que depoletam sentimento e nostalgias bem cá dentro:)*

Anonymous said...

Ainda bem que a chuva continua lá fora... e não dentro de ti :)
Gosto de te ler... Mas raramente encontro palavras para dizê-lo...

Beijos e boa semana