A verdade é que não tinha inspiração para nada. Nem para cozinhar e inventar todas aquelas entradas e sobremesas com uma apresentação razoável, apenas razoável porque também tinha de dedicar algum tempo aos pratos principais; nem para me sentar a escrever naquela mesa de café, com os pires cheios de bolinhas de papel, cada um por cada um dos pensamentos que tive enquanto os enrolava e, de repente, um escrevinhar da caneta no papel suave e liso e, noutro de repente, o bebericar da chávena; nem para conversar, conversar como deve ser, sobre coisas interessantes e utilizar cada um dos conhecimentos mais curiosos que absorvi na última semana como início de conversa.
Sim, falta de inspiração. Daquela que nos rasga qualquer capacidade para pensar, alimentando o monstro do bloqueio. Matraqueados infinitos, água a escorrer pelas goteiras, velas acesas, o som do piano, o tamborilar dos dedos, o tilintar dos copos, os arrepios do vento. Suspiro, suspiro e a mão não se move e a caneta permanece presa nos átomos de ar. Suspiro, suspiro e a língua fica presa ao céu da boca, enquanto toda a gente fala à minha volta. Não reparem que eu estou aqui, façam como se fosse invisível, uma estátua que faz parte da decoração um quadro estagnado na parede, uma partícula de pó. Ignorem-me. Por favor.
Sigo pela rua, final do dia, espírito agitado, passos intercalados conforme a música que toca nos auscultadores enfiados nos ouvidos, a brisa na face, a humidade presa a cada fio de cabelo, mas o sol irritante ainda pintado no alto do céu. Suspiro, suspiro, a mala pesada ao ombro, a teimar fugir para o chão, como uma criança que quer andar mas que mal gatinha, e eis que cai e tudo fica à vista de toda a gente. Canetas, bloco, rímel, porta-moedas-e-chaves, um gancho, ai a máquina fotográfica, objecto exclusivamente feminino para certas alturas de mês a mês, a caixa de rebuçados para a garganta, a garrafa de água, um botão, um livro de bolso, o lanche metade comido, como é que tenho tanta coisa na mala?, arrumar tudo depressa antes que alguém veja, a começar pelo mais indiscreto, recuperar a consciência da vida, como se tivesse morrido por segundos enquanto caminhava pela rua sombria.
Suspiro, suspiro e deixo-me arrastar pelo som do semáforo em verde, mala bem fechada, que mania de andar com ela aberta, passadas largas e pensar no alerta laranja com tão bom tempo, a pensar no café logo à noite, sítio antigo, mas sempre novo, e de repente uma gota de chuva mesmo por cima das pestanas, o pó de kohl de repente a cair como lágrimas negras, lágrimas de chuva que não parava de cair e em apenas vinte passos até chegar ao hall de entrada fiquei encharcada, de água e de inspiração. Cheguei e escrevi-te uma carta começada por “Era uma vez”. Envio-te quando não puder, para me sentir constrangida e atirá-la para o balde do lixo, amassada. Não quero que saibas que foste a razão do meu bloqueio.
7 comments:
Não me sinto inspirado para tecer um comentário que faça juz a este texto (a qualquer um dos teus textos), mas ainda assim não consigo ficar "calado". Em primeiro lugar, não percebo como consegues melhorar a cada palavra que escreves... é quase como se tivessemos de inventar outra palavra para sublime para definir os teus textos e consequentemente os teus pensamentos. Desculpa, mas parece que te roubei a inspiração.
Será que me podes deixar ver a carta? Ou já a deitaste para o lixo? (hás-de dizer-me onde é que fica o teu caixote do lixo =p)
Podes continuar a suspirar, parece que resulta ^^
beijo nessa bochecha
acontece, de vez em quando, a inspiração foge ou simplesmente flutua noutros oceanos....
mas logo,logo, uma onda a trás de novo...
e nós esperamos pelo resultado,eh!eh!
:)
beijito
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engraçado como a eventual falta de inspiração consegue, por vezes despoletar um sem numero de coisinhas que querem desenfreadamente saltar cá para fora :) escreves bem menina, muito bem :)
__baci_
ah e tens uma brincadeira para ti no meu outro (novo) blog ;)
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ai ai ai esqueci-me de uma coisinha :) ADORO ESSA MÚSICA!!!!!!!!!!!!!
Detesto quando fico sem inspiração!
Luna, tenho um desafio para ti. Tens que fazê-lo num post, ok? :D
Beijinhos
G.S.,
não sei o que dizer perante tal comentário... o meu espírito sente-se lisonjeado! (quanto à carta... depois falamos disso =p)
Carlos,
as ondas da minha inspiração estão à espera de uma brisa para avançarem até ao areal... por esses lados o tempo está muito menos tempestuoso do que está aqui pelo Porto...
Farfalla,
obrigado ^^ eu também adoro esta música, entre outras dos CocoRosie... desta vez a falta de inspiração deu este texto, mas às vezes não é tão generosa... (ai sou tão preguiçosa para esses jogos! mas prometo que vou fazê-lo!)
Marta,
digo o mesmo... sou super preguiçosa e um pouco reservada para esses jogos, mas prometo que o faço quando tiver tempo ^^
Biju e bom fim-de-semana!
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