Fala-me de sítios onde nunca estive, de pessoas que nunca conheci, de melodias que nunca ouvi, de aromas que nunca cheirei, de texturas que nunca senti. Fala-me de tudo isso, como se também tu tivesses estado lá. Não me escondas os pormenores insignificantes. Conta-me como foi, como não foi, como poderia ter sido. Trava-me o choro com guloseimas, faz-me acreditar nos contos de fada. Nunca gostei de ser céptica. Mistura os nossos tons de pele em maresias com um leve odor a fantasia. Quem sabe, um dia, vamos os dois até à lua, de mãos dadas, como se tudo não passasse de uma chamada de longa distância. Até lá, continua a contar-me as tuas estórias, acompanhadas de gomos de laranja e canecas gastas de chá, água fervida por cima da saqueta e nunca o contrário (dizia eu), não te preocupes que vou usar o chá em ervas por cima do coador (dizias tu). Canta canções da nossa infância, lembra-me do que nos ríamos quando não passávamos do tamanho da nossa vontade, quero tanto que o tempo pare nem que seja um segundo (dizias tu, enquanto olhavas o relógio de pêndulo que ribombava a cada hora como uma marcha solene de desconhecimentos), quero tanto voltar atrás no tempo (dizia eu, a olhar para as tuas mãos, uma por cima da outra, com nós proeminentes e veias salientes). Gosto de ouvir as tuas piadas parvas, os teus argumentos inúteis, enquanto suspiras o fumo de um cigarro e eu fico a seguir o trilho cor de fantasma, porque os espíritos são cortinas de nevoeiro (dizias, com o olhar fixo num ponto desconhecido de mim), com medo que tudo se evapore. Sinto na pele os teus clichés, os nossos devaneios, aquela música que escolhemos para as tardes de chuva, que sabem a domingo mas se sentem em sextas-feiras em que o mundo parece girar em torno do fim-de-semana.
vem comigo pelo inacessível dentro
condutor de sonhos e vertigens*
, declamavas tu, de cor e salteado e eu ficava a saborear as palavras, como se fossem doces de bergamota e jasmim, e as tardes, essas longas tardes de sonhos e castelos no ar que sabiam a luares pelo caminho atribulado. Traz-me os teus pesadelos, infiltra-os nas nossas discussões fervorosas de tom de voz irónico e escarninho, percorre com os teus longos dedos as teclas do piano que toca sozinho as partituras que escondias na gaveta do fundo, terceira a contar de baixo, por debaixo de camisolas que pensavas nunca mais usar, um dia vamos até à lua (dizias tu, a acender e a apagar a chama fria do isqueiro prateado), prometo que guardo essa viagem numa caixa secreta (dizia eu, de olhar na janela que dava para a rua agitada).
o frio existe quando somos pedra
mas depois a dez mil rostos de distância
tu colocas um verso na minha própria boca
e fazemos amor pela literatura fora*
, continuavas tu, nesse jeito de quem conta um segredo que não passa de ouvido em ouvido, nem de boca em boca, mas passa por nós como uma brisa suave, uma bruma que não se desfaz com temporais. Um dia vamos recordar estas tardes como se fossem ontem, (dizias tu, entrelaçado no fumo espesso e agreste, fresco na garganta mas ácido no nariz), e vamos perder a vontade de avançar no tempo (dizia eu, com os dedos a tamborilar na mesa, fazendo estremecer as colherzinhas de metal frágil), e um dia vamos ser tão felizes que estas tardes vão parecer tristes (dizias tu, avançando demasiado depressa com os teus pensamentos para cima de mim).
desaparecido em combate de mim mesmo*
, e suspiravas como se as verdades não fossem para ser proferidas em voz alta e breve. Os nossos devaneios foram rios de caudal intenso, a transbordar por essas margens fora, sem ordem ou caos, simplesmente como água que escorre de cascatas intensas, mas em sentido horizontal, como o fumo que se esvai pela frincha, direito como se cortasse o ar, e vamos percorrer os livros como se fossem amantes serenos (dizias tu), e decorar as palavras para nos perdermos em esquinas sem sentido (dizia eu, acompanhando o teu raciocício). Nesses dias fomos felizes e nem o sabíamos e hoje percorro com os dedos frios as páginas desses cadernos que enchemos de ternuras e carícias reconfortantes em tardes pardas, sem razão aparente, apenas com a vontade de nos perdermos do mundo para conquistar a lua, talvez o universo.
*Pedro Sena-Lino in biofagia
"Happiness is a sad song..."
5 comments:
"lembra-me do que nos ríamos quando não passávamos do tamanho da nossa vontade" >>> esta frase entranhou-se em mim, Luna. Tens um dom, o dom de escrever como se polvilhasses poesia por cima das palavras, como açúcar em pó em bolos que nos fazem suspirar pela infância. Pergunto de novo: para quando um livro? Por favor, faz-me, faz-nos essa vontade, escreve um livro, publica-o, delicia mais pessoas com a tua poesia, com sonhos que moldas em fábulas que cheiram a melancolia.
A música é mesmo o teu género xD
beijo*
Para quando um livro? Cada vez gosto mais do que escreves!
Beijinhos
I guess sometimes I'd like to see the beauty you see in everything, to embelish, unfortunatly I'm a poor saw to which everything is raw and as it is (ai).
Tá lindoo, lindo!
UAU!
Parabéns!
beijinhos *
Um livro... talvez um dia destes ;)
Obrigado*
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