Matei-te

Matei-te.
Não resisti à tentação de acabar contigo depois de tudo o que não fizeste.
Nunca pensei que fosse capaz de cometer um crime, mas a tua ausência de amor levou os meus sentimentos ao extremo.
Comecei por escolher a arma.
Não, foi ela que me escolheu. Peguei no corta-papéis que tinha quase um século, que compraste para mim numa loja de antiguidades. O cabo rendilhado, com figuras mitológicas esculpidas em relevo gelou na minha mão,
Não precisei de pensar no assunto enquanto não chegavas. Na realidade, foi bastante fácil abstrair-me do que estava prestes a fazer. Olhei pela janela, tentando descortinar pedaços de vida por entre a chuva. Tomei um chá quente que se espraiou em notas de conforto dentro de mim. Vi o meu programa preferido na televisão. Li um capítulo de um livro.
E, quando finalmente chegaste e quiseste dar-me um beijo eu abracei-te.
Pela última vez.
Apertei o cabo do corta-papéis.
Apertei mais e mais. O meu coração acelerava de comoção. As veias pulsavam e a minha cabeça latejava pela angustia e nervosismo.
Perguntaste porque estava tão tensa, mas eu esbocei um sorriso que te deixou aliviado. Quiseste beijar-me, mas eu não deixei.
Cortei o ar com o corta-papéis e não senti o braço que pesava pela tensão.
Os teus olhos abriram-se de espanto e de medo.
O ar parou quando a lâmina parou precisamente junto à pele do teu braço.
- Toma. Já não o quero. No quarto está uma caixa com todos os presentes que me deste. Fica tu com eles.
Ficaste paralisado enquanto eu pegava na mala cheia de coisas minhas. Não tinhas reparado que ela estava num canto da sala desde ontem.
Saí porta fora, depois de assassinar a tua memória e todos os pedaços de ti que ainda faziam parte da minha vida.

P.S.:A pedido de muitas famílias, aqui fica um conto que tinha guardado numa caixa negra, no fundo do guarda-roupa. Apenas porque pediram e apenas porque são meus amigos, aqui está ele, exposto para toda a gente.
Ah, qualquer coincidência com a realidade é pura semelhança...

"Happiness is a sad song..."