quantos indecisos andam agora por aqui

Saturday, January 19, 2008

As insónias dão-me para pensar...







Estou sem sono.

Volto de uma noite animada e logo sou contagiada pela nostalgia. Como quando nos desatamos todos a rir de alguma coisa muito parva e, de repente, do nada, ficamos todos em silêncio. Um silêncio de expectativa, de arrependimento, de preocupação. Um silêncio suspenso por algum tempo, que não é sintoma de nenhuma doença desconhecida, que não é sinal de aborrecimento. É um silêncio que paira nos olhos de todos. Entreolhamo-nos, na expectativa de que um de nós comece a falar ou volte a rir. Para recomeçarmos todos de novo. Quando volto de momentos animados sinto a mesma coisa que sinto nesses silêncios. Tenho um amigo que diz que, quando estão muitas pessoas reunidas a conversar e todos se calam de repente, nasceu mais um padre.
Quando regresso de instantes de conversas e gargalhadas fico com aquela sensação estranha, meio nostálgica, meio aliviada, como se tivesse tirado um peso de cima. Não consigo perceber porquê. Abro a porta e retiro o casaco, arrumo-o ou atiro-o para cima da cama e suspiro. É sempre assim, depois de vozes e bebidas e aquele ambiente quente e despreocupado. Lembro-me de vários serões. Alguns tristes, alguns nostálgicos, alguns alegres, alguns demasiado alegres e alguns que se desvaneceram da memória. Lembro-me de muitos, cada qual em lugar diferente, cada qual com uma pessoa ou duas a menos e muitas a mais. É difícil de explicar aquela melancolia de se recordar fragmentos de conversas, reflexões espontâneas, dignas de algum qualquer tratado filosófico, piadas conforme o contexto em que nos encontramos, brindes desvairados, cabelos despenteados, roupas amarrotadas por se passar tanto tempo no mesmo lugar.
Hoje apenas penso nos dias que se seguem, nestes momentos que raramente se vão repetir na próxima semana, porque há demasiadas coisas para fazer. Meu deus, meu deus, o relógio vai andar tão depressa que nem me vou aperceber de que daqui a pouco chega Fevereiro e graças ao movimento de rotação da terra, incerto como os nossos actos, que tentamos frequentemente racionalizar, vamos ter um dia a mais nesse mês e ainda tenho que encontrar alguma coisa especial para programar com alguém, que não sei quem, num lugar que não sei onde.
Hoje não custou assim tanto a passar. Por entre cafés e descafeinados, um cappuccino e um outro “ccino”, três chás e uma cerveja, conseguimos descortinar o que de mais esquisito aconteceu no dia de toda a gente, depois na semana de toda a gente e depois na vida de toda a gente. Gosto da capacidade que temos em universalizar acontecimentos e momentos, gosto do surrealismo e o realismo, do confronto de ideias e das discussões acesas. Gosto de “soirés”, de sessões de cinema em cima da hora, de pipocas partilhadas com alguém, de correr para a bilheteira, de correr para deixar alguém na estação de comboios, de passeios de carro com pessoas que conduzem mal e que têm consciência disso.
Hoje sinto o aroma das tardes perdidas, das horas descartadas ou relegadas para segundo ou mesmo terceiro plano. De me lembrar de um ou outro pensamento, que talvez já me tenha invadido em sonhos, e de o escrever no pedaço de papel mais próximo, mais provavelmente num guardanapo que depois fica esquecido num bolso ou no fundo da mala, para depois ser reencontrado quando menos espero. Hoje encontrei um bilhete que deve ter uns… três anos. Não me recordo de como estava o meu cabelo nessa altura. Gosto de situar os acontecimentos pela forma como o meu cabelo estava cortado e disposto. Com franja, sem franja, escadeado, comprido, curto, médio. Sempre preto. Sei de cor o cheiro do papel, sei-lhe de cor a textura. E, durante o tempo que passou desde que o detive nas minhas mãos, nunca me esqueci das palavras, guardadas bem no fundo da memória, que reaparecem quando menos espero. Pensei que tivesse perdido aquele pedaço de papel. Lilás, porque na altura era uma cor que sempre me atraiu e que agora é uma das minhas preferidas, pois nunca lhe cheguei a descobrir o mistério e eu adoro esses mistérios sem solução. Talvez tenha sido por isso que guardei com tanto primor aquelas palavras e me esqueci do seu suporte material. Muitas delas… ainda não lhes consegui descortinar o sentido.
A caligrafia não era das melhores. Caneta preta, “bic”, ponta média. Hoje quase só escrevo com essas canetas e, finalmente me rendi à escrita a preto. Não sei porque não deitei fora aquele papel. Hoje, agora, enquanto o seguro nas mãos trémulas, esforço inútil para não deixar aquele pequenina, minúscula lágrima de saudade escorregar pela face, penso na inutilidade que são estas recordações. Para que servem? As lembranças ficam todas guardadas no coração, certo? Ou pelo menos na mente. Como que no começo de um diário aberto para mim, começava com “Querida…”, naquele formalismo familiar que são as cartas. Não sei se fui realmente querida por ti. Mas foi assim que te dirigiste a mim nesse pedaço de papel.
Sempre adorei cartas. Recebê-las, escrevê-las. Isso seria assunto para um post de 30 mil caracteres, no mínimo. Hoje escrevo pouco, recebo poucas. Na minha caixa de correio encontro mais envelopes pouco personalizados, uns poucos postais de alguém que teve a sorte de conseguir fugir para um outro lugar, e um espaço vazio, oco, por preencher, mas que fica sempre à espera de ser preenchido. Dias havia em que esperava à porta pelo carteiro e que resultavam em mais uma desilusão. Gostava mais dos tempos em que teria de esperar pelo dia seguinte para receber respostas ou perguntas naquelas conversas escritas que hoje em dia são tão instantâneas e enviadas em poucos segundos que perderam a magia e a ingenuidade de outros tempos. Gosto das coisas com calma, com tempo. Hoje não há tempo para respirar.
Seguro o papel com medo de o amarrotar ou com receio de que ele se desvaneça só de pousar os olhos nele. É estranho tê-lo encontrado tão longe de casa, tão longe do sítio onde nos encontrávamos. Sinto que estou numa realidade alternativa, com um objecto querido da realidade onde pertenço. Gostava que as coisas fossem fáceis, que as coisas tivessem sido fáceis. Nunca o são, porque dizem que as coisas fáceis não valem verdadeiramente a pena nesta vida. Será?
“Se as coisas se passassem como nós queremos, nada teria aquele gosto invulgar dos momentos que escorrem por nós. Se contigo as horas passam num ápice, o vermelho parece azul e o verde parece cinzento, sem ti não vejo horas nem cores. Percebes?”. Se pudesse responder diria que sim, apenas para tranquilizar uma alma inquieta. Percebo e não percebo. “Sei que gostas de cartas e palavras, no geral, e como tal prefiro adequar-me a ti, da mesma forma como pareces adequar cada pedaço de realidade aos teus olhos, para depois as encaminhares a quem mais precisa.” Gostava de ter ouvido estas mesmas palavras com a tua voz, gostava de as ver sair da tua boca.
Sim, gostava que tivesse sido tudo mais fácil. Esconder o rosto no ombro daquele alguém e sentir que o tempo pára e que as preocupações são adiadas. Sentir o aroma familiar de quando estamos confortáveis com alguém; sentir na pele os beijos e pedaços de alma; suspirar sem fim de mãos dadas, caminhar uma tarde inteira em silêncio. Podemos não falar? Posso só respirar o mesmo ar que tu, estar ao teu lado sem marcar na agenda, simplesmente olhar para ti?
Hoje, num rasgo de impaciência e saudade, transtorno e cansaço, frustração e nostalgia, peço um isqueiro emprestado e tenho cuidado para não incendiar o quarto com o que estou prestes a fazer. A melhor caixa de lembranças está no coração. Ao menos aí não lhe posso pegar fogo.

“Happiness is a sad song…”

8 comments:

Anonymous said...

Não vejo porque chamas isto de compressões de pensamento, quando isto É o pensamento. Quando a página abriu fiquei surpreendido, porque a música começou logo. Foi uma escolha excelente. Não há nada de mais delicado do que a tua escrita, principalmente aquela em que revelas tanto de ti. Tens sempre tantas coisas para contar, conheces tantas pessoas, tantos momentos! Não percebo como é que ainda não editaste nada em livro... tenho pena das pessoas que nunca te leram...

Anonymous said...

Ah sim?? Então venham daí mais insónias por favor...

m said...

E porquê queimar os pedacinhos de papel que encontramos? Isso não é o mesmo que apagar o que vivemos, independentemente de estar guardado no coração? Hmmm.. esses pedacinhos de papel recheados com uma letra deveras ''estranha'' feita cuidadosamente com uma caneta ''bic'' preta é tudo o que temos desse algúem que nos mandou e que infelizmente não está connosco. São essas palavras que nos fazem recuar no tempo e sentir, de novo, o toque, o cheiro, a paixão...
Um texto muito bem escrito, muito expressivo que nos faz ouvir mais alto o bater do coração.
Continua! E não passes uma borracha nos assuntos do passado, que em tempos, foram felizes! :)

Beijinhos grandes *

Anonymous said...

Sinceramente... sinceramente... não sei o que pretendes. Eternizar as palavras na tua alma? Talvez. Essa tua última frase fez-me lembrar aquele poema de que gostas tanto, do Rilke. Lembro-me de quando pensavas que esse poeta era uma poeta, apenas porque achavas que era demasiado sensível e apaixonante para ser um homem. Por vezes o teu coração engana-se. E é por isso que não deves queimar os suportes materiais de antigas paixões. Ao menos as palavras não se enganam. Nós é que nos enganamos quando as interpretamos de outras formas que não passavam pela cabeça de quem as escreveu...

Kokas said...

«A melhor caixa de lembranças está no coração. Ao menos aí não lhe posso pegar fogo».

Para quê mais palavras? Estou deiliciado com a leveza da tua escrita. Estou cada vez mais convencido de que teremos mais uma grande jornalista na nossa praça, em breve. E olha, quando te disserem que para se ser bom jornalista não é preciso escrever muito bem... ri-te. São os invejosos e os ressabiados que vêm com essa conversa. Sim, aqueles que acham que sacar relatórios confidenciais é que é. Mas depois, quando vamos ver bem... nem escrever sobre eles sabem, ou então tiveram que trocar esse relatório pela venda da face.

Parabéns por mais esta tatuagem genial! :)
Aquele beijinho

Carlos said...

Achei giro « ainda tenho que encontrar alguma coisa especial para programar com alguém , que não sei quem »
não programes... as coisas acontecem, vive os momentos e acalenta-os, sem planos , porque quando acontecem é ouro sobre azul e são intensos e prazenteiros.
discussões acesas dão luta e dá vida interior....
sabes?
é realmente lindo caminhar de mão dada e em silêncio.. e num olhar sentir o aconchego do outro...


Se ainda o não experimentas-te , um dia o vais conseguir e darás pulos de alegria interior.

fica bem

APC said...

Mas o que escreveste é O Pensamento!
Ah, resta-me dizer porque é justo, que o fazes de forma quase divina.
Beijos.

lua prateada said...

Somos apenas sêres
Somos fumaça
A vida nos enlaça!...
Mas somos a cena
Do palco da vida!...

Uma feliz semana cheia de coragem e amor.
Beijinho prateado com carinho

SOL