Entrego-me à leitura com um ligeiro sentimento de culpa. Olho em volta e reparo que as estantes pedem limpeza, que as pilhas de folhas pedem organização, que o ambiente de trabalho do computador está cansado daquele caos de ficheiros com nomes estranhos. Mesmo assim, deixo-me levar, página após página. Ontem fui à biblioteca e, como sempre, não resisti àquelas estantes pejadas de clássicos e pensei que não faria mal aliviar o estudo com um livro que há muito me observava, indecisa a olhar para as fileiras de lombadas, com o pensamento incerto. Gostaria de levar todos para casa, mas apenas aquele, de lombada azul escura e capa encadernada, de letras prateadas e páginas ainda novas me hipnotizava. Resolvi trazê-lo, para reler, Jane Eyre de Charlotte Brönte, juntamente com outro que estava nos apontamentos da cadeira cujo exame é já na segunda-feira, O nome da Rosa de Umberto Eco.
Continuo a pensar se será útil tentar não ler e focar-me no que tenho mesmo que fazer, quando uma das poucas coisas que raramente não me apetece fazer está constantemente a interferir com o meu raciocínio. Costuma acontecer isto com uma amiga minha e a sua série/telenovela preferida. Mesmo no seu estado mais submerso de concentração, não consegue parar de especular sobre o futuro, tão previsível, colorido e de um tamanho tão pouco proporcional à vida real [não necessariamente metaforicamente falando] das suas personagens preferidas, e quando eu lhe digo algo do género “é apenas uma telenovela” ela replica “tu não gostas quando eu digo isso dos livros que lês” ao que eu respondo “desculpa-me por achar mais interessante um enredo escrito e que requer mais o uso da imaginação” ao que ela replica “desculpa-me por achar que uma imagem vale mais do que mil palavras” ao que eu insisto no meu ponto de vista ao dizer que acho que “uma palavra vale mais do que mais de mil por isso um texto completo é quase demasiado extenso para o seu número de palavras e o significado que elas têm ser dito em voz alta” ao que ela diz que desiste porque acaba sempre por sentir que não consegue ganhar estas batalhas muito pouco lúdicas ao que eu respondo “bom, se começasses por ler mais… sabes, isso é capaz de ser do vocabulário limitado dos programas de televisão que vês.” Não é por mal, são simplesmente rivalidades demasiado infantis. Não discuto esse tipo de coisas com outras pessoas, é só com esta amiga. Gosto de a arreliar e ela gosta de me irritar. E não é por não gostar de telenovelas ou séries, porque adoro e vicio-me facilmente. É por não me conformar com o conformismo das pessoas e por me irritar comigo própria por fazê-lo.
Não vou enumerar todas as qualidades da leitura, nem as suas virtudes, porque cada qual tem os seus gostos e desejos e ninguém pode ser tão neurótica quanto eu. Penso que sou demasiado meticulosa com as coisas de que gosto e parece que transformo tudo num ritual e a Su, que está a estudar psicologia faz de mim um pseudo-paciente ao repetir que eu tenho neuras maníaco-depressivas. Pois bem, no que toca aos livros irritam-me as pontas dobradas, as nódoas e os cantos tortos, as capas com marcas por serem usadas por baixo de folhas soltas para escrever, as lombadas a descolar, as folhas que se desprendem, daqueles livros em edições mais baratas. No entanto, já me habituei a tudo isso. É mais ou menos como uma relação com alguém. Acabamos por ter nos habituar, resignar ou criticar para sempre os defeitos, apenas porque não conseguimos passar sem as virtudes.
“Don’t judge a book by it’s cover” é um dos exemplos mais perfeitos que encontrei até hoje e faz-me mais sentido do que as “aparências iludem”. Se a Su estivesse a ler isto diria que é tudo psicológico. Pode ser que seja, mas a verdade é que já me acomodei ao sentido que dou a certas frases feitas que, apesar de tudo, por serem demasiado repetidas acabam por perder o sentido.
Este ano faço anos no dia de Carnaval e, ao que parece vou chegar a casa mesmo em cima da hora de apagar as velas com a minha família. A época de exames de Janeiro está a ser bem mais deprimente do que todas as outras e o meu único consolo é poder usufruir da época especial por ser finalista. Assim, posso fazer tudo calmamente, que é a melhor forma para se fazer as coisas. Entretanto, gostaria de fazer o melhor que posso agora, mas não consigo, porque nas alturas em que tenho muitas coisas para fazer, aparecem ainda mais coisas e vou-me lembrando de ler na agenda compromissos que há muito me tinha esquecido e, para complicar, não me apetece fazer nada senão aquelas coisas que apenas me apetecem sempre que não as posso fazer.
Houve uma altura em que queria mesmo ser escritora e agora, apesar de ainda querer, prefiro adiar esse pequeno sonho em prol de outras coisas. No entanto, ainda me lembro de uma época de exames em que tinha a parede do quarto cheia de post-its com ideias e mesmo frases para usar num futuro best-seller. Como os tempos mudam! Neste momento tenho dois livros à espera que eu lhes dedique algum tempo, mas infelizmente apenas leio um capítulo por dia. Longe vai o tempo em que conseguia ler quase 5 livros por semana. E tenho também uns quantos episódios de séries que vejo em pequenos intervalos e, (in)felizmente há pessoas que compreendem este atrofio de não se ter tempo e, mesmo assim, insistem connosco para sair e desanuviar.
Nestas alturas sabe bem ir àqueles sítios descontraídos, onde toda a gente deixa os pensamentos deprimentes e as tarefas adiadas do lado de fora e se deixa levar pela música e pela bebida e pela conversa e pelas piadas. Conseguimos ficar horas e horas recostados, naquele barzinho escondido, onde felizmente já ninguém fuma e os que precisam mesmo vão lá fora o que, como o espaço é todo rodeado por vidros, cria um ambiente interessante ao ver embater o fumo do lado de fora e poder respirar livremente lá dentro. Não me canso destes momentos em que parece que todos partilhamos do mesmo sentimento de desconsolo e ao mesmo tempo satisfação.
Gosto de olhar para as pessoas e descobrir pequenos traços de estórias. Aquele que rói as unhas, aquela que está a deixar de fumar mas tem manchas de nicotina sob o anelar da mão direita, aquele que está a precisar de um corte de cabelo, mas que anda a convencer a namorada a deixá-lo deixar crescer o cabelo, aquela que já não devia beber mais mas não consegue parar, aquele que tem um tique nervoso e tenta disfarçá-lo enquanto conversa com uma jovem bastante atraente, eu e o grupinho, não o de sempre, mas o que sempre está no coração.
E entretanto começa aquela música que tínhamos estado a cantarolar enquanto jantávamos e não nos contemos e pedimos para pôr mais alto, e afastamos as mesas para dançar. E dançamos pela noite fora, certos de que “we are so young now, we are so young, so young now/And when tomorrow comes we can do it all again/And it really doesn't matter that we don't eat/And it really doesn't matter if we never sleep/No, it really doesn't matter, really doesn't matter at all/'Cause we are so young now, we are so young, so young now”.
"Happiness is a sad song..."
4 comments:
Gosto dos teus desabafos.
Fazem-me sentir normal =p
Absolutamente fascinante. Eu percebo-te na perfeição! Mas o que adoro fazer nos livros é sublinhar.. e se visses os meus livros alguns dizem ''nao concordo''; ''tens toda a razão''.. é como se houvesse um diálogo entre mim e o livro! Adoro!
Fazes anos na terça de carnaval e vais estar com a família e eu faço dia 11 de março e vou estar a estudar história... (é super fascinante - ye ye - mas os meus anos calham sempre na altura das aulas) Mas não me queixo muito. Ainda há o teu blog e o do resto do pessoal para desanuviar! :D
Beijinhos **
Como seria a vida sem livros? Eu não a entenderia, mas entendê-la-ia sem telenovelas de gosto duvidoso.
Beijos
Meu deus, n te consigo imaginar sem livros lol. Mas eu gostava de ser assim... deve ser uma coisa espectacular, estar constantemente a viajar por páginas e personagens criados...
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