Quero empacotar os sentimentos e mandá-los para longe, bem longe daqui, talvez para o outro lado do mundo ou para o espaço, talvez para outra galáxia. Talvez os mande para ti. De mim, para ti. E depois um código postal. Talvez pinte os lábios de vermelho e dê um beijo no pacote da encomenda, para lhe dar aquele ar dramático dos filmes. Talvez deixe cair uma lágrima, cultivando um pequeno círculo húmido de tristeza, salgando o papel pardo castanho. Tenho de me assegurar que a caixa vai bem fechada, não quero sentimentos soltos por aí. Tenho de arranjar fita-cola ou fita adesiva resistente ou então uns pregos. E depois corda.
Também posso enterrá-los. Os sentimentos. Bem fundo, na terra húmida. Sentir os grãos por entre os dedos e o cheiro a relva acabada de cortar e descobrir um tesouro ou uma pedra que fez parte, em tempos, de um meteorito. Uma das brincadeiras de infância que me persegue era aquela que nos fazia usar a imaginação e a absurdez. Deitá-los para fora. Íamos todos para o jardim atrás de um prédio e encontrávamos as coisas mais estranhas e depois arranjávamos explicações parvas que justificassem o facto de elas estarem ali. Quanto mais absurda melhor. Talvez deva lidar com a vida assim. Torná-la ainda mais absurda do que ela é e arranjar explicações absurdas para as coisas que me acontecem. Não estou habituada, porque sou realista, mas posso tomar-lhe o gosto e descansar sobre a ideia. Talvez um dia o faça sem pensar, como hoje faço o laço nos atacadores dos ténis ou lavo os dentes ao acordar. Sem pensar.
Absurdo é enterrar os sentimentos, isso sim é absurdo. Demoraria mais de um dia para cavar um buraco suficientemente grande. Talvez seja melhor deixá-los onde sempre estiveram. Se o coração tiver memória pode ser que seja tão má quanto o que eu preciso que ela seja. Para poder esquecer e esquecer as feridas e as quedas, para poder fazer novas feridas e dar novas quedas e curá-las aos poucos e poucos. Mas não, este coração tem muito boa memória, senão ter-te-ia já esquecido, não é?
Aquele jogo infantil, recordo-me dele, e de ter encontrado um esqueleto de um pássaro, talvez o de um piriquito ou de um canário, e de ter inventado que aquele pássaro vinha da Ilha do Tesouro e mais ninguém conhecia a estória, porque mais ninguém estava interessado nem conseguia pronunciar o nome do autor, Robert Louis Stevenson, por isso eu dizia que era dos desenhos animados que davam em primeiro lugar, demasiado cedo, porque eu acordava muito cedo, mas a verdade é que eu me deitava muito tarde porque ficava a ler e a tentar perceber as estórias daqueles livros demasiado complicados que estavam na estante. E hoje leio e rio-me da inocência das frases e da simplicidade das palavras. Mas na altura, era demasiado difícil para perceber, porque ainda há pouco tempo tinha entrado para a escola. Então tive de inventar outra estória para o passarinho, disse que ele era um dinossauro bebé, porque tinha ouvido algures que os dinossauros eram parentes das aves. Sim, era absurdo e toda a gente se riu. E logo a seguir aquele rapaz da minha rua, que era também da minha turma, e que hoje mal o reconheceria, se não fosse pelos seus olhos verdes, encontrou uma foto, uma foto enterrada no jardim, junto a uma palmeira pequena, daquelas que não precisam de estar em países tropicais para conseguirem crescer. Não me lembro que estória inventamos para a fotografia. Hoje penso em sentimentos, mas os sentimentos não se vêem nos retratos, vêem-se as expressões e os gestos congelados em instantes, sorrisos e choros eternizados, mas nunca a tristeza ou a alegria ou a saudade. Estranho, isto, dos sentimentos. Hoje a palmeira já poderia estar grande, mas alguém a cortou porque lhe tapava a vista. Hoje, por hoje, deixo-me acomodar à sensação de estar demasiado pesada de sentimentos e emoções. Pode ser que se evaporem até amanhã, quando esta insónia passar e conseguir dormir. Pode ser.
“Happiness is a sad song…”
5 comments:
Tão, tão, tão... qualquer coisa. Não sei explicar. Tu brincas com as palavras e com os sentimentos e com as lembranças. É preciso dizer mais?
(graças a deus que subscrevi o rss do teu blog... =D é bom ler as tuas coisas em primeira mão!)
Enterrar sentimentos? Sabes bem que isso é tarefa impossível e, antes disso, inútil. Que tal pendurá-los?
:p
Aquele beijinho!
Enterrar sentimentos? Sabes bem que isso é tarefa impossível e, antes disso, inútil. Que tal pendurá-los?
:p
Aquele beijinho!
Olá Luna,
para quê tanto trabalho em «escavações»,nem pensar ,esses ( os sentimentos )continuarão a fazer pare da tua existência, e ainda bem...
eles se entrelaçam entre as emoções
e te embebem, em momentos únicos....
Bj
Há passagens aí no texto que me fazem lembrar o principezinho. E partilho a opinião do Kokas. Pendura-os num cabide. Assim podes ''vesti-los'' sempre que quiseres :)
Beijinhos
Post a Comment