Depois de uma manhã atribulada com a Su e depois do almoço com a Anita dei por mim sem nada de interessante para fazer. Os exames de recurso que pensei que teria de fazer desvaneceram-se sob a forma de notas ligeiramente medíocres, mas que se traduziram em fardos desviados. Mas agora, que eu nada tinha para fazer, todos pareciam estar tão ocupados com as suas tarefas que dei por mim sozinha. Ficar em casa estava fora de questão, mesmo com aquele tempo instável, as nuvens ameaçando espremer o cinzento em pingos agudos e o vento a soprar nos ouvidos. Peguei num guarda-chuva e vesti um casaco quente, atei o cabelo num rolinho para não fugir à brisa, lembrei-me de pegar no mp3 e saí.
Desci a mesma rua de sempre, vazia de pessoas e de carros, passeei por zonas conhecidas e segui a multidão de foliões e transeuntes disfarçados de alegria. Segui-os e fui ter à Baixa, completamente esgotada de espaço, mas sempre com espaço para mais um. Dois palcos, barraquinhas e eu, normal. “Belo disfarce. É bem realista” sussurrou-me um homem, disfarçado de pseudo-mulher nos seus collants apertados e na sua peruca ruiva. Não consegui sorrir, sequer.
[fiquei com montes de confettis presos ao cabelo, como pensamentos bons enredados numa teia de devaneios]
Não me senti sozinha, nem deprimida, como a Anita, que no dia de anos teve de terminar um trabalho e, mesmo depois de o ter terminado não arranjou ninguém para sair com ela. Senti-me calma porque “nunca estamos sós quando nos temos por companhia”. Separei-me da multidão que involuntariamente me acompanhava e subi a rua 31 de Janeiro e não precisei de dar mais indicações aos meus pés. Fnac, secção de literatura traduzida, o mal para os meus pecados, os pecados e o meu mal e menos espaço na estante. A melhor prenda que poderia ter oferecido. De mim para mim.
“As Ondas é considerado o melhor e o mais radical romance de Virginia Woolf – um desses escritores que nasceu no «instante em que uma estrela se pôs a pensar». Marquerite Yourcenar, sua tradutora francesa descreveu assim este romance. “As Ondas é um livro com seis personagens, ou melhor seis instrumentos musicais, pois consiste unicamente em monólogos interiores, cujas curvas se sucedem e entrecruzam com uma segurança que lembra a Arte da Fuga de Bach. Nesta narrativa musical, os breves pensamentos de infância, as rápidas reflexões sobre os momentos de juventude e de confiante camaradagem desempenham o mesmo papel dos allegros nas sinfonias de Mozart, abrindo espaço para os lentos andantes dos imensos solilóquios sobre a experiência, a solidão, a maturidade (…) é um livro sobre a impossibilidade do ser.”
E então fui ver lojas, roupa e promoções de última hora, todas aquelas coisas fúteis, e porque é que os sacos das lojas de roupa interior são semitransparentes??, e tanta gente para se abrigar da chuva, e uma princesa saída dos contos de fada, um ladrão acabadinho de sair da prisão, um marco do correio com olhos que me acenou, um palhaço, um Noddy em ponto ainda mais pequeno. Sentei-me confortavelmente numa mesa escondida por uma coluna e um vaso, num canto camuflado de esquina e mais escuro do que eu esperava e desatei a ler. Desenfreadamente, distraidamente, quase me esquecendo de mim própria.
“Arranquei do calendário os dias de Maio e de Junho, disse Susan, e vinte e dois dias de Julho. Arranquei-os e amarfanhei-os, e por isso já só existem como um peso no meu coração. São dias mutilados, como borboletas nocturnas com as asas arrancadas, incapazes de voar. Já só faltam oito dias. Dentro de oito dias, descerei do comboio e ficarei parada no cais às seis e vinte e cinco. A minha liberdade vai então desabrochar, fazendo estalar todas as obrigações que me tolhem e diminuem – os horários, a ordem, a disciplina, o ter que estar aqui e ali a certas horas. O dia explodirá de brilho quando eu abrir a porta e vir o meu pai com o seu velho chapéu e polainas…”
Se ela soubesse..., penso eu, enquanto fecho o livro para ler uma mensagem da Su. Chegou a hora do jantar. Juntam-se mais um bando de almas, num grupo íntimo e cheio de coisas para revelar. Não preciso de prendas melhores do que as pessoas que eu mais gosto e que ocupam um lugar no meu coração presentes e com os sorrisos mais sinceros que já vi. Beijinhos e abraços e não preciso de mais do que isso. Jantamos, recebo prendas/lembranças interessantes e não posso deixar de sorrir maravilhada pela delícia que é a simplicidade dos gestos das pessoas que adoramos.
E depois ofereceram-me café e a senhora do McDonald's fez-me um sunday com metade caramelo e metade gelado, maravilhoso a princípio, mas enjoativo depois, só porque eu fazia anos, e depois ir a outro café e descobrir que está fechado e acabar por ir ao café de sempre, ou melhor o segundo café de sempre, e tomar chá de manga e pêssego ao som de música de discoteca e combinar uma saída numa data próxima para comemorar os anos e o final dos exames a sério, à nossa maneira.
[adoro vê-la assim, em dias em que parece que tenho tempo para tudo. hoje estive sozinha com os meus pensamentos e acompanhada por pessoas especiais e depois estive com ela, a árvore, e vi sorrisos conhecidos que tiveram tempo para me ver antes das atribulações (thank you G.S.!!) e recebi telefonemas a torto e a direito e jantei com almas amigas e tive tempo para suspirar e tirar fotos e ler e rir e chorar e fazer compras. e ver pessoas mascaradas.]
E as insónias continuam, assim como a vontade de ler até amanhecer. Mas hoje não. Um ano a mais pesa-me no espírito.
"Happiness is a sad song..."
6 comments:
Tenho pena de não ter tido mais tempo para estar com o teu sorriso. Esse teu ano a mais não se vê, escuta-se quando falas. Mas não é apenas mais um ano, são 21 e é mais uma data de livros =p
LYL= Luv You Luna xD
Parabéns mais uma vez! :P Foi um dia diferente ao que parece. Mas quando se está acompanhado por um livro estamos muito bem, não é verdade?
Tudo de bom!
Beijinhos :D*
Texto brilhante, a contraiar a própria VW que "meteu uma pedra no bolso e atirou-se ao Tamisa".
Um beijo
"mesmo com aquele tempo instável, as nuvens ameaçando espremer o cinzento em pingos agudos e o vento a soprar nos ouvidos"
JESUS! Nem no teu dia de anos deixas as palavras de lado. Nesse livro, a personagem mais parecida contigo é o Bernard, não é? Aquele que não vive sem teias de palavras... finalmente, um livro que eu também já li!!
Gosto tanto das tuas palavras...Da forma como as escreves, como as alinhas. Têm tanto de simples como de beleza. É sempre um prazer passar por aqui:) Ah, e como eu gosto de Virginia Wolf:p *
olá
gostei das tuas «reflexões»e das ...
E já fora de horas ( isto lembra um filme ), parabens.
um beijo
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