quantos indecisos andam agora por aqui

Tuesday, March 04, 2008

Aquele que cheirava a luar

Ela saiu para comprar limões apenas com uma carteira na mão. Pensava naquele molho que lhe tinham ensinado e que não ficaria a mesma coisa se não tivesse três pingos de sumo de limão. O vento acariciava a sua pele macia e rosada, de quem esteve em frente ao fogão durante algum tempo e os seus olhos pareciam pousados sempre no mesmo horizonte, aquele, o dos pensamentos cativos. Talvez fosse demasiado cedo para preparar o jantar.

Na verdade, ele não tinha nada para fazer. De mãos nos bolsos e o cabelo escuro revolto, parecia pensar em algo mais para além do que fazer no dia seguinte. Dir-se-ia que relembrava sonhos antigos, pelo brilho que ostentava no olhar. Tinha a barba por fazer, talvez por desleixo ou por comodismo, e os candeeiros de rua projectavam sombras na sua sombra. Era demasiado cedo para pensar no que fazer no dia seguinte. Era demasiado cedo para fazer planos. Gostava de viver de improviso.

Quando atravessaram a estrada ficaram parados frente a frente. Ela com a pele rosada, ele com os olhos brilhantes, como se fossem duas peças do mesmo puzzle.

- Tem uma folha no cabelo. – disse ele, como quem menciona que o tempo está bom ou está mau ou está assim-assim.
- Obrigado. – disse ela, ao tirar a folha seca das madeixas emaranhadas pelo vento.
- Tem as mãos bonitas.
- Obrigado. Você também.
- E a pele morena.
- A sua é pálida.
- Cheira a molho de tomate.
- Eu sei. Você cheira a luar.
- Trate-me por tu.
- Tens uma voz bonita.
- Tu também. Pensei que a pele morena não corasse facilmente.
- Pensei que a pele pálida corasse com o frio.
- Não está assim tanto frio.
- Eu não estou assim tão corada.
- Como sabes?
- Vejo-me nos teus olhos.
- Pensei que os olhos fossem o espelho da alma, da alma de cada um.
- Depende. Depende de quem for a pessoa que estiver a tua frente.
- Se quem está à minha frente és tu, o que é que isso quer dizer?
- Não sei. Está frio.
- Não está assim tanto. Mas está vento. Posso guardar essa folha?
- Claro. Fica com ela. Mas tens de me dar alguma coisa em troca.
Ele vasculhou os bolsos. – Tenho aqui um verso.
- Onde?
- No meu bolso. Mas tenho de to dizer ao ouvido.
- Está bem.
Aproximaram-se até sentirem o calor um do outro.
- “
tudo era dos outros e de ninguém,
até que tua beleza e tua pobreza
de dádivas encheram o outono.”
- Posso ficar com ele?
- Tanto quanto posso ficar com esta folha.
- De quem é?
- De alguém que soube ler a alma de outro alguém. Não me lembro do nome.
- Lembra Pablo Neruda.
- Sim, é dele.
- Tenho que ir comprar limões.
- Para o molho de tomate?
- Sim. Há alguma loja aberta a esta hora?
- Não és de cá?
- Não. Tu és?
- Sim. Chegaste há pouco?
- Sim.
- Vou contigo comprar limões. Mas primeiro, como te chamas?
- Não te vou dizer, por enquanto. Ainda não te conheço.
- Fica para depois, então.



"Happiness is a sad song..."

10 comments:

Anonymous said...

Luna, cada vez mais me surpreendes. Aquele que cheirava a luar também é aquele que nunca deixou de segredar versos por aí. Talvez ande à solta, escondido por entre as esquinas do pensamento.

Anonymous said...

Tanto pode ser dito com uma folha seca, como com versos de alguém que sabe ler almas, como com palavras de uma geniazinha =p

Keep on, quero o resto da estória.

[qualquer semelhança com a coincidência é pura realidade?]

Liliana Carvalho Lopes said...

Singelo, simples e belíssimo.

As tuas palavras encantam-me.

Carlos said...

olá,
...que raio , que dizer??
hoje não digo nada.
só isto:( não digas a ninguém )
gostei muittttoooooooooooooo.

Boa semana

beijo

APC said...

Assim se encontram as almas verdadeiramente gémeas. Num aparente acaso.
Gostei particularmente da figura da folha seca no cabelo.
Beijo

m said...

aaiii eu adoro estas histórias!!!! Quero mais! Quero mais! Quero mais!

bj

Alice Barcellos said...

Lindo! :´)

Anonymous said...

O que os limões fazem!!!! :)
Gostei muito e mais não tenho a dizer :)

Beijocas

.diana.alves. said...

Como eu gostei do que li!!! Tão perfeito! Tão apelativo! Mesmo:)
Um beijinho de bom fim-de-semana*

Gi said...

Gostei deste juntar de peças, deste puzzle como lhe chamaste. Desta conversa de coisas que se pensam e raramente se dizem .

Um beijo
(tambem me sabe bem passar por aqui)