quantos indecisos andam agora por aqui

Wednesday, March 12, 2008

A rapariga da folha no cabelo

Querida V.,

Quem sabe não fui feito para ser infeliz? Não será difícil perceber porquê. Tu estás aí e eu aqui. Tu quiseste ficar e eu quis partir. Por algum motivo parece que uma parte de mim ficou contigo. Como se de repente tivesse ficado sem um baralho de cartas por tê-lo deixado em casa de alguém. Mas é alguma coisa mais importante. Uma parte do meu coração, talvez.

Não quero soar lamechas, mas também não consigo tornar reais as palavras. Gostava que fosse mais fácil, como mudar os canais de televisão ou comer tarte de morango. Mas não é, porque nada que valha a pena é simples. Ou simplista. Na verdade, parece-me que sou demasiado egoísta com as emoções. Queria que abandonasses tudo e viesses, mas tinhas acabado de chegar. A vida é feita de escolhas. Um caminho ou outro? Gostava que tivesse havido apenas um caminho.

Não consigo deixar de pensar nos "ses" e nos "quês" e em "quantos". Quanto tempo vai demorar até nos voltarmos a encontrar, quantas pessoas conheceste depois de mim, quantas vezes folhas ficaram presas ao teu cabelo, quantas vezes fizeste aquele molho com limão, quantos livros já leste, quantos sonhos já tiveste? Serias mais feliz se tivesses vindo comigo? És feliz de todo estando longe de mim? Claro que és. Há sempre alguém que gosta mais, num duo. É fácil perceber qual de nós. O mais egoísta.

Nunca gostei muito de escrever cartas. Contam-se pelos dedos aquelas que escrevi. Não espero que esta chegue a ti e que abras de imediato. Talvez a guardes sem rasgar o envelope ou talvez rasgues o envelope com a carta lá dentro. Não cheguei a saber se és curiosa. Eras, sim, ou talvez continues a ser, ansiosa. Queres sempre mais. Mais informação, mais frases, mais livros, mais noites à luz do luar, mais detalhes sobre quem já passou na minha vida, mais vinho ou mais água. Nunca me pediste mais atenção, porque não foi preciso. E eu nunca te pedi mais sorrisos porque dos teus olhos emana uma espécie de alegria que nunca consegui perceber e parece que é o teu espírito que me sorri. Vezes e vezes sem conta, sem eu pedir.

A verdade é que anseio o teu toque, que sabia a pétalas de rosa e tento sugar tudo de ti que ainda resta neste pedaço de folha de plátano que encontrei por entre os teus cabelos. Não consigo deixar de pensar em ti apesar de teres sido a visita mais fugaz no meu coração. As primeiras impressões ainda me deixam abalado, está visto. E por mais que a minha mão me doa enquanto escrevo estas palavras, não consigo parar de escrever. É que depois vai ficar o silêncio em vez do raspar da caneta no papel, reciclado como sempre querias, e o silêncio pesa como chumbo sobre os ombros. O silêncio é como um vazio de espinhos ou um manto negro que não tem eco.

Não quero parar de escrever porque sei que quando parar, não me resta grande coisa senão olhar para a rua e para a noite e sentir-me incompleto, e sentir-me como uma peça de um puzzle que não tem outra peça que encaixe em mim senão tu. E enquanto escrevo recordo-me. Da pele morena, dos cabelos, do espanto, do canto, das mãos, do sofá ocupado e da estante dos livros desarrumada, dos copos de vinho partilhados, da presença, dos suspiros, das gargalhadas.

Mas vou terminar, porque não vale a pena adiar o sofrimento de todos os dias. E Inverno chegou, reparaste? As folhas secas já caíram todas e agora é a vez da chuva chegar. Não te deixo o remetente. Não quero que me escrevas. Preferia que tivesses vindo comigo. E não quero que te sintas obrigada a responder.

Sempre.
D.



"Happiness is a sad song..."

4 comments:

Anonymous said...

Continuo sem perceber, mas como puseste "lembranças" como label, calculo que esta carta tenha pelo menos algumas semelhanças com a realidade.

Como sei que nunca exporias nada tão pessoal aqui, deduzo que escreveste tu. E pela magia que emana do teu texto tenho quase a certeza que foste tu [eu não sou indeciso =p].

Parabéns Luna. Já consegues escrever de um outro ponto de vista e transformaste o teu blog num best-seller. Agora sou obrigado a fazer refresh a cada minuto para ver se continua. A saga. Daquele que cheirava a luar e da rapariga com a folha no cabelo.

Bolas.

Anonymous said...

... serendipity...

Carlos said...

Olá,
Mais uma vez deleitei-me ao ler os teus textos.
tens alma de poeta.
muito bem.
Ás vezes revejo-me na tua juventude e em muitas das histórias(??) que por aqui nos deixas.
agora será introspecção,o conteúdo do teu 1º livro, ou simplesmente aquilo que nos move??????

«
Não quero parar de escrever porque sei que quando parar, não me resta grande coisa senão olhar para a rua e para a noite e sentir-me incompleto»

«Quem sabe não fui feito para ser infeliz? Não será difícil perceber porquê. Tu estás aí e eu aqui. Tu quiseste ficar e eu quis partir. »

Tudo isto, tem , intensidade .
parabéns Luna pela tua veia....


bj

m said...

simplicidade, na minha opinião