eu tinha uma amiga, a S., que não conseguia estar sozinha. arrisco dizer que nunca tentou, mas isso é um à parte. às vezes sentavamo-nos no Piolho, lá dentro mesmo, antes da confusão de sexta-feira à noite começar [se bem que desconfio que havia gente que entrava para almoçar e só saía de madrugada] e ela lamuriava-se e praguejava contra a solidão. era mesmo assim a S. praguejava e dava uma passa num cigarro, é assim que me lembro dela. dizia que não aguentava, não aguentava ficar quieta num canto, nem mesmo para escrever. quando o fazia ia para um jardim, o da Cordoaria, em desespero de causa, ou o do Palácio de Cristal, com vista para o Douro e aves raras a deambular pela relva. os cadernos dela eram bonitos, porque ela os personalizava com tecido que ia comprar a uma loja perto de Cedofeita. às vezes encontrava-a nessa rua ou mais abaixo, perto da livraria Lello. sempre triste e cabisbaixa, excepto quando tinha alguém para dar o braço, mas sempre sem o torcer. mas era assim, a S., e o seu passatempo preferido era ter namorado e escrever-lhe poemas, de preferência ao seu lado. era por isso que acabava por ficar solteira, ninguém tinha pachorra para permanecer acordado enquanto ela tentava não forçar as rimas.
sempre que ela falava da solidão, sempre com sete pedras na mão e a voz embargada - era muito sensível a todas as emoções, especialmente as negativas, a minha S. - não se coibia de repetir aquela máxima de que o homem é um animal social. não creio que sejam propriamente sociais, as relações. principalmente as amorosas, digo, porque elas são isso mesmo, amorosas e não há nada de social no romance. era isso que eu lhe dizia. ela olhava-me e estrebuchava. pois que não eram, não, que o romance não foi inventado pela sociedade, foi sendo inventado por pessoas que não tinham nada que fazer e precisavam de companhia, mas a companhia de uma pessoa apenas, às vezes do sexo oposto, às vezes não. de qualquer forma, eu dizia-lhe para procurar no significado de sociedade no dicionário e como sabia que ela não o iria procurar, explicava-lhe eu mesmo que a sociedade é um grupo de pessoas regidas por leis. e não há nada de mais anárquico do que o amor ou a paixão ou às vezes a amizade, sublinhava eu.
eu pergunto-me, sempre me perguntei, como é que as pessoas que não conseguem estar apenas entregues à sua própria companhia, conseguem levar relações a bom porto (leia-se, ficar felizes com alguém para todo o sempre ou, pelo menos, ser felizes enquanto dure, somente). acontece que eu acabei por escrever uma crónica sobre isso, num dos poucos dias em que eu própria estava sozinha. ele, que lia o que eu escrevia mais por vontade do que por obrigação, achou o texto excessivo e mais noticioso do que opinativo, o que não é suposto acontecer numa crónica. que eu tinha ido buscar citações de lunáticos solitários e que a minha própria opinião ficava abafada. mas ficou assustado, porque o texto era uma elegia favorável à solidão. é claro que alguém que está numa relação não gosta de ouvir que a outra pessoa quer estar só, nem que seja para lidar com os próprios problemas. eu disse-lhe que pensava que a solidão era um isolamento voluntário que só podia acontecer, na verdadeira acepção da palavra, se uma pessoa se tornasse um misógino, mas de toda a raça humana, e migrasse para um sítio ermo qualquer onde não houvesse mais nenhum ser pensante.
agora, não me é estranha a sensação de solidão mesmo quando se está rodeado de pessoas. e é por isso mesmo que sempre achei que a solidão mais não é do que um sentimento. melhor, uma emoção. logo a S., sempre muito emotiva, sentia-se só e tentava abafar essa cisma com alguém. para ela, não se tratava de uma escolha, mas de uma necessidade. para mim a solidão é conviver com os próprios pensamentos sem ter alguém que nos consiga refugir dessa realidade paralela, dizia-lhe eu e ela não acreditava e não acreditava e não acreditava.
e então, algo peculiar aconteceu. ela conheceu um turista italiano, que cozinhava bem e fotografava mal, e partiu com ele sabe-se lá para onde. antes disso, deixou-me no correio uma página rasgada de um dicionário com a palavra solidão sublinhada a vermelho e um comentário, escrito noutra folha, a dizer isso mesmo, que a solidão era um sentimento e que segundo um escritor que ela tinha lido, viajar era mudar o cenário dessa solidão, mas que mais valia tentar, até porque o italiano também escrevia poemas e tinha vários moleskines cheios deles, na mochila, e levava-os para todo o lado.
eu sempre achei que o homem é um ser, não social, mas solitário. depois do bilhete da S. passei a achar que é possível estarmos sozinhos, juntos. foi pela solidão que, em pequena e sendo ainda filha única, me apeguei aos livros e comecei logo com livros com personagens como Huckleberry Finn, Tom Sawyer ou Oliver Twist. criaturas que se metiam em sarilhos, mas sempre acompanhadas. porque acho que é assim que deve ser. ser-se solitário sabe melhor quando se está acompanhado. sinto eu.
"happiness is a sad song..."
3 comments:
A solidão, pode ser uma opção... mas nunca uma escolha....
Não entendo o que escrevi... deve ser normal...
miss u
bjt
Não por condição, mas por opção.
Acho que entendi o que vyrushack disse..
Eu, sendo o filho mais novo dos, a infância foi uma constante fuga dos irmãos mais velhos. Sim, porque implicar com o mais novo completava-lhes os dias. Ai, como eu adorava os momentos de solidão.
Assim continuo.
solidão é um vício...
mesmo que deixes que outros te habitem... de vez em quando
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