de noite estas ruas enchem-se de jovens entorpecidos pelo álcool ou pelo quotidiano, que se amontoam em grupos de copo na mão e conversas agitadas. de manhã sigo o rasto da animação pelo Bairro Alto acima, guiando cuidadosamente os passos para escapar às poças de tom cinzento escuro. de manhã, a calçada emana um odor acre. com os sentidos apurados pelo ar matinal do subúrbio, sinto em Lisboa o aroma a cerveja, a pickles, a limão e a pequeno-almoço de café. são estas as pistas deixadas pela noite, que entram pelos pulmões ofegantes adentro, mesmo sem serem convidados, e nos recordam que depois do crepúsculo há ali mais vida do que durante o dia que passa lentamente em direcção à noite.
amontoados de garrafas aguardam pacientemente a vinda do camião do lixo. quando ele chega conseguem-se ouvir os estilhaços das garrafas a serem atiradas para dentro do contentor e esse som mistura-se com os restantes ruídos da cidade, que acorda tarde, mas mantém-se agitada ao longo da tarde. é nessa altura que os jovens se juntam no Largo de Camões ou noutros pontos de encontro, e é aí que falam sobre o seu dia ou a sua semana, esperam outros amigos, fumam os seus cigarros de marca ou enrolados artesanalmente, relaxam ao sabor de uma bebida qualquer ou de um gelado, quando as temperaturas se mantêm assim, como se fossem de verão.
pela manhã, gosto de subir ao terraço e ver a senhora que leva o saco do pão amarrado no pulso, as duas senhoras de meia-idade que se juntam a conversar e que comentam a sopa que fizeram e que está pronta antes das 11 da manhã e que discutem assuntos das notícias e apregoam futuros sombrios para os jovens e para o país, assim como o rapaz que passeia o cão e recolhe os seus cocós com um saquinho preto enquanto fala com o pequeno, como se ele percebesse alguma coisa do que ele diz. gosto de ver as ruas semi-vazias, porque de noite, quando saio, não consigo ver o chão, de tantas pessoas que passam naquelas ruas, e não consigo distinguir os sons e os cheiros, tal é a agitação que se vai formando.
gosto de prescrutar as ruas tortas e as calçadas gastas, de ver passar pessoas, de ir espreitando a metamorfose daqueles espaços que vão adquirindo, ao longo do dia, novas formas e contornos, como se estivessem cansados de ser sempre iguais. a noite aqui não é melancólica, como no subúrbio, nem triste, como nas ruas onde vivo. enche-se de risos e vozes e música de cada um dos bares que habitam esta zona. este bairro é um microcosmos no meio da cidade. já decorei o lugar preciso, ao fundo da rua, onde começa um outro rebuliço, o da zona urbana onde passam carros e as pessoas se apressam para chegar a casa, em vez de se juntarem em grupos e se deixarem ficar. esse é o ponto em que o inverno se começa a fazer sentir, apesar do calor, onde as montras se preparam para o natal, onde o homem que vende castanhas aguarda a fome de quem passa, pacientemente sentado com o seu rádio portátil mas velho e um tacho a fumegar à sua frente e um amontoado de castanhas que se deixam ficar. com este clima pesado é estranho passar pela nuvem de fumo com aquele aroma peculiar, que faz lembrar folhas castanhas e crocantes pelo chão, roupas quentes e o corre-corre das compras.
todos os dias, a cidade passa por várias mutações, vários climas, e tudo culmina depois de as luzes nocturnas serem ligadas. entrar num edifício e ficar no escritório o dia inteiro faz-me sentir como se entrasse numa máquina do tempo que vai funcionando sozinha e que me leva para uma outra realidade depois de sair outra vez, em direcção a casa.
"happiness is a sad song..."
6 comments:
Deve ser giro trabalhar no bairro alto! mas confesso que acho deprimentes os vestígios que os noctívagos deixam nessas ruas tão características... *
é muito giro e eu apego-me facilmente aos lugares. de manhã é deprimente, mas assim que as ruas se enchem desses noctívagos, uma pessoa até se anima também =)
"com este clima pesado é estranho passar pela nuvem de fumo com aquele aroma peculiar, que faz lembrar folhas castanhas e crocantes pelo chão, roupas quentes e o corre-corre das compras."
Quase que senti as solas dos meus ténis a pisar massiços de folhas "crocantes"... the wonders of the autumn.
Por outro lado, de cada vez que entramos num edifício, acabamos por entrar numa máquina do tempo. Nunca tinha pensado nisso, mas o teu último parágrafo fez-me pensar em Orwell. Já leste?
Beijo meu*
pisar poças de folhas crocantes é o melhor do outono.
já paravas de falar de autores que nunca li (muito) e sobre cujos temas escrevo, mas sem ter consciência disso. 1984, já leste?
agora ando com Paul Auster (outra vez). primeiro Oracle Night (maravilhoso) e agora Sunset Park (página 120, mas ainda não me convenceu).
Isso e as castanhas.
Já li tudo o que havia para ler dele. Portanto, falo com conhecimento de causa que estão muito bem um para o outro lol. A última edição do 1984 é mesmo ao teu género. Capa rosa choque muahahaha.
Paul Auster is so overrated... só mesmo o Moon Palace e o Carderno Vermelho. Por causa disso comprei um Moleskine. Vermelho.
hum... um dia experimento, até porque o Paul Auster fala muito dele (e não porque tu o recomendas, atenção =b)
how can you say that?! ainda por cima se te levou a comprar tão nobre caderno humpf. Moon Palace, claro, mas o último que li e até o Experiências com a Verdade e a Trilogia de Nova Iorque (saiu uma pergunta sobre esse no Elo Mais Fraco, no outro dia!)...
não tens gostinho literário nenhum... a começar porque lês este blogue muahaha.
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