quantos indecisos andam agora por aqui

Monday, May 18, 2009

Memórias...

Lembro-me de poucas coisas. O que me ficou na memória, no entanto, ficou tão vincado que sinto com a mesma intensidade os sabores, os aromas, as texturas, como se ainda lá estivesse.

Lembro-me da cor do mar: verde e azul e transparente. Lembro-me da temperatura da água: morna junto à praia e quente perto das ondas. Lembro-me do aroma que pairava no ar: o cheiro a marisco fresco ao largo dos barcos de pesca, o cheiro a caril de camarão e côco em redor das casas e cabanas de palha, o cheiro da fruta fresca, principalmente das mangas e das papaias, perto dos bazares; o cheiro da maresia, tão diferente das praias daqui; o cheiro da pele morena da minha família, o cheiro a casa, aquele que supostamente não conseguimos distinguir, aquele de que só os outros se apercebem, mas que lá eu conseguia sempre sentir, como se fosse um pequeno milagre.

Lembro-me de me sentir estrangeira da segunda vez que lá fui e de levar um baralho de cartas novinho que saiu de lá completamente gasto: foram horas e horas com os amiguinhos da vizinhança que apareciam lá em casa só para ver se eu estava muito diferente das fotos, para perguntar se a Europa é como as fotos dos postais, para saber como é viver fora dali. Horas e horas a jogar às cartas, aqueles jogos que fui ensinando e que eles continuam a jogar até hoje.

Lembro-me de me estender na areia a escaldar e olhar para o céu, apenas para perguntar a mim própria (do alto dos meus treze anos) como é que era possível estar tão longe e o céu ser igualzinho ao lugar a que eu me tinha habituado a chamar de casa. E lembro-me de estar sentada na sala com os meus avós, na altura em que o meu avô começava a deixar de ver como dantes, com os joelhos a bater ao de leve na perna da minha avó enquanto ela rezava o terço numa língua que me era (e ainda é) desconhecida, e de me sentir fora do resto do mundo.

Hoje, lembro-me das noites quentes e estreladas, da lua grande e amarelada a sorrir por entre as nuvens, dos uivos do vento, de me encostar à minha avó por ter medo de toda aquela escuridão, porque não havia postes de luz como aqui, nem polícias nem seguranças, e porque estávamos tão longe da cidade. Lembro-me da turbulência do mar em dias de tempestade, de não conseguir dormir e de me levantar aos tropeções para espreitar as ondas revoltas pela janela da sala, de sair para a varanda com uma caneca de chá de rosas e me sentar num dos degraus e não pensar por momentos, apenas olhar, para capturar cada pedacinho de tudo aquilo como se nunca mais fosse voltar. E lembro-me do dia da partida, do meu avô a chorar, com os olhos cansados da dor, do meu pai comovido, da minha mãe com os lábios a tremer, do meu tio cabisbaixo, da minha avó sempre atarefada para afastar a tristeza. E lembro-me de olhar pela janela do avião e pensar que tudo aquilo tinha sido um sonho.

E passaram-se nove anos e não sei quantos mais passarão até eu regressar, mas não me esqueço das pequenas coisas, dos pormenores e das sensações. Hoje apeteceu-me escrever sobre tudo isto, porque tenho a impressão de que há coisas que nunca mais vou ver. Acima de tudo, tenho o terrível pressentimento de que nunca mais vou ver o meu avô, que entretanto perdeu a visão e a presença de espírito, e balbucia coisas sem sentido e chama por nós como se ainda lá estivessemos. E tenho pena, porque só estive com esse meu avô em três fases diferentes da minha vida: quando nasci e nos meus primeiros dois anos, aos cinco anos e durante o mês que passei com a minha tia naquela terra e aos treze anos, durante pouco mais de quinze dias, na altura dos anos do meu irmão e da festa dos pescadores.

Hoje tive (ainda) mais saudades por ter a quase certeza de que nunca mais o vou ver nem vou ouvir a sua voz sapiente nem vou aceitar das suas mãos engelhadas e magras os docinhos e as festinhas que povoaram a minha infância.

"Happiness is a sad song..."

2 comments:

Anonymous said...

e eu quase consegui sentir em mim cada pedacinho do que contaste com essa tua forma genial de explicar sentimentos, emoções, sensações.

quero um livro teu. já.

ass.:o teu fiel leitor*

Sandra said...

Puseste-me a chorar sua feia! Por razões óbvias, que tu sabes muito bem quais são :).
Sentir que nunca mais vais voltar a ver alguém deve de ser horrível, mas acredita que ter a certeza que nunca mais a vais ver, porque ela ja nem cá está é pior.. Luninha vamos em frente, let's go.
A vida é mesmo assim, e acabam sempre por ser os que menos merecem, e os de quem mais gostamos que sofrem sempre mais. mas não te sintas injustiçada com isso, é apenas uma "fase" menos boa pela qual todos passamos.
Não te sei mais o que dizer -.- bah bah bah!

Leva sempre contigo essas memórias, e recorda-os sempre com sorrisos e lágrimas de alegria por teres conhecido pessoas e lugares tão fantásticos, que te ensinaram tanto!
És genial, lembra-te sempre disso!
JUAS JUAS JUAS **************