quantos indecisos andam agora por aqui

Thursday, October 29, 2009

de como as pessoas se apegam aos sítios

o comboio é aquele sítio de caras macambúzias de quando parece que o dia vai ser demasiado longo para tantas tarefas ou que a noite parece tão distante como a lua. há quem se dedique à leitura e dou por mim a ver de tudo: há quem leia publicações gratuitas - não me atrevo a apelidá-las de jornais -, há quem leia jornais diários de manchetes gritantes, há quem leia revistas de todo o género, inclusive das de culinária; há quem leia livros de consumo rápido e/ou bestsellers [isto foi uma crítica velada] ou históricos ou baseados em factos verídicos; e há os turistas que lêem afincadamente mapas da cidade.

de vez em quando encontro conhecidos. preferia ir sozinha, para não ter de fazer conversa de elevador, mas acabo por falar para não parecer carrancuda. há aquele que é filho da tia de uma amiga minha, que está três vezes maior do que na altura em que conheci essa amiga e o estranho é que agora falo mais com ele do que com ela, que teve um filho e casou e foi morar para outra cidade; há a amiga da minha mãe, que não é propriamente minha amiga e quase nem é conhecida, mas que faz questão de se sentar ao meu lado quando me vê e desfazer-se num rol de inquietações e lamentos despropositados – não sei como é possível uma pessoa ser tão pessimista de manhã; há o revisor que fica de pé junto à porta e não faz mais nada senão olhar e olhar e olhar e de vez em quando comenta o tempo ou a crise num tom resignado que me irrita e torna amarelo o meu sorriso, se é que chega a ser sorriso e não um simples esgar; há aqueles que só conheço de vista e que só me conhecem de vista, mas que de vez em quando, quando a solidão ou o tédio apertam resolvem encetar conversas com uma ou outra frase que possivelmente ouviram de outra pessoa ou leram em qualquer lado; também há aqueles que nunca vi, mas que conversam connosco como se fôssemos amigos de longa data ou como se quisessem que nós nos tornássemos íntimos.

no entanto, as melhores viagens são aquelas em que me sento junto a janelas que não estão sujas ou grafitadas e consigo ver o borrão de paisagem passar demasiado rápido para conseguir reparar em pormenores e não tenho de abrir a boca senão para bocejar e vou roendo uma maçã enquanto leio distraidamente frases de um ou outro livro – depois releio com atenção, mais tarde.

e entretanto o comboio chega e assim que as portas se abrem cheiro Sintra e respiro Sintra e sinto-me em casa, em Sintra. não é nada específico, não são as queijadas ou os travesseiros ou os pratos saloios ou a vegetação, é simplesmente Sintra. e há a brisa fria que sabe bem depois do calor abafado do comboio e o aroma das flores dos canteiros e o aroma daquelas árvores agarradas a paus pelo passeio fora e o odor do café pelas ruas fora, porque há cafés por todo o lado, e às vezes o cheiro do pão acabado de fazer e o fumo molhado dos cigarros daqueles que fumam mesmo à saída da estação e tudo isso misturado são manhãs acabadas de começar.

e passo junto ao quiosque para ver as manchetes principais e lá vejo o jornal com notícias minhas e a senhora que se atarefa a desempacotar palavras cruzadas e sopas de letras larga tudo para dissecar o que escrevi e dizer que não conhecia esta ou aquela palavra e dizer que fotos tão lindas, que fotos tão lindas, e dizer aos clientes que param para comprar o tabaco que lhes vai durar meio dia: que fotos tão lindas, que fotos tão lindas, parece que estive lá. E saio daquele círculo familiar, e sigo pela rua acima e o trânsito entope as estradas e a azáfama instala-se.

chego, paro para tomar café e já o dia começou e já os afazeres fervilham na mente e já a agitação começou e já são horas de escrever e de ver emails e de fazer telefonemas e de subir e descer as escadas e de sair e fotografar sítios e gravar vozes de pessoas ou apontá-las no caderno já calejado.

e agora que cheguei, parei e pensei, dei-me conta: já não conseguia passar sem este reboliço.

"happiness is a sad song..."

4 comments:

Sandra said...

esquisitona, sabe tão bem ler-te!! :)
beijão*

MeiodeLeite said...

Gosto de como descreves essa tua realidade, tão mágica. Ou melhor, a realidade é normalíssima, a escrita é que é especial =)

Já tinha saudades das tuas palavras!! É favor escrever mais regularmente, os leitores agradecem...

Beijo meu*

Only Me said...

Saudades de passear nas tuas palavras...
é preciso dizer mais?

Beijinhos

m said...

i'm speechless..
beijinho