frio cortante, o primeiro sopro do dia na face, vento gelado no cabelo e o horizonte alaranjado, com raios a despontarem de súbito, sem que os tivessem chamado, sem que os pudessemos travar. os edifícios brancos vão sendo cobertos pela aguarela de luz e, num repente, o ar deixa de ser tão gélido. isso lá ao fundo, no cimo. cá em baixo, as pedrinhas roçam as solas dos sapatos enquanto se esquadrinha o chão. lembro-me da sensação, foi a mesma deste ano: um mar infinito de possibilidades, 365 dias pela frente com apenas alguns planos traçados, tudo muito esbatido como um esboço. e entretanto os dias vão-se desenhando, eles próprios, quase sem a nossa ajuda.
lembro-me do receio e depois da rapidez com que o ano chegou, todos a trocarem cumprimentos e beijinhos e o silêncio depois da música animada que cobria o som da chuva. este ano deve ter sido diferente, pensei no ano que já começara noutros países e assim tudo pareceu menos agitado, como se já tivessem sofrido por nós o receio do começo - dizem que o pior é sempre começar e muitas vezes, comigo, é assim - e a nossa tarefa de comemorar o início tivesse sido facilitada. o ano passado não vi fogo de artifício, mas senti o artifício do fogo, do clamor, do ribombar, uma espécie de junção de emoções, porque havia demasiada indefinição. este ano foi mais calmo, com a Torre de Belém à mercê dos relâmpagos coloridos, chuviscos e muita lama, sumo de maçã e coríntios e muitos mais beijinhos do que há um ano, apesar de haver menos pessoas.
ao lembrar-me disto, vem-me à memória que faz hoje 50 anos que Albert Camus morreu e foi encontrado por entre os destroços do automóvel que bateu contra uma árvore a caminho para Paris. no seu bolso, um bilhete de comboio que devia ter usado em vez de usar o carro do editor, na mala um manuscrito que não chegou a acabar. estas pequenas coincidências que terminam em tragédia fazem-me lembrar uma paranóia constante em que o fantasma das más escolhas paira no ar quando me sinto assim para o feliz. é claro que isto não tem nada a ver com a passagem de ano, ou talvez tenha, mas muito subtilmente. outra coisa que me impressiona é a facilidade com que a mente consegue divagar de um assunto para o outro, sem que haja uma ligação física ou logicamente exposta entre eles.
acho que no fundo, no fundo, o que eu queria dizer era que a passagem de ano de 2008 para 2009 foi tão diferente, mas tão igual à deste ano que tenho a ténue esperança de que tudo corra como no ano passado: conturbado ao início, mas magicamente desenredado ao longo dos meses. a começar depois de Março, devo acrescentar, e muito lentamente até Julho. depois daí, quase não reparei no tempo a passar. e depois veio a semana anterior à passagem de ano e é nessa altura que se começa a pensar no que já passou e uma pessoa se apercebe do quanto já passou, do quanto ficou por passar e do quanto poderia ter passado se.
entretanto, aproveito a oportunidade para mostrar o fogo-de-artifício a que assisti, na melhor companhia do mundo.
"happiness is a sad song..."
4 comments:
Foi bonito... não foi?
bjt
Maravilhosas as tuas descrições de que já tinha tantas saudades. Quando escreves, tens o dom de transformar as palavras numa película de filme, com imagens a correr à nossa frente.
Lembrei-me do aniversário da morte de Camus hoje e pensei que quase de certeza te lembrarias do texto que lemos por acaso e nos fez pensar na razão que tinha em apontar cruelmente a absurdez das coisas e o facto de sim, sermos todos estrangeiros. O impossível pode tornar-se realidade, defendia ele, e é isso que é absurdo, que acaba por se tornar aceitável. Deixemo-nos de conversas, que eu sei que sabes tudo isto e muito mais.
Gostei do teu fogo-de-artifício, a tua reclamação fez-me lembrar o teu raciocínio de dinheiro queimado pelos ares.
Beijo meu*
P.S.: Ando por aqui "Invisível". Sou um macaco de imitação, já sei que o vais dizer.
ai este fogo também foi giro :P imagina tipo a parte dos 26 segundos, mas so com o boom boom boom.. durante um minuto :| e tu rodeada de postos de onde saía o fogo, a sentires o teu coração a bater ao ritmo do fogo e a sentires as casas e todo o chao tremer :P é lindo! é assim que acaba o nosso fogo todos os anos :D e de ano para ano tá cada vez mais forte, hehe *****
Adorei o blog...expressas-te de uma maneira muito pessoal. É o tipo de escrita que tenho quando escrevo para mim mesma...
Voltarei...
E o "happiness is a sad song" é a cereja no topo do bolo =)
Bom ano e beijo*
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