Regressar é sempre tortuoso. Há pedacinhos de mim aqui e ali e por mais que goste de os deixar espalhados, por vezes sinto falta de os reencontrar. Não, nunca estou completa, porque falta sempre qualquer coisa. De cada vez que abandono casa deixo um bocado da minha alma, aquela que não consegue viver sem aquele aroma, sem o meu quarto onde ficam armazenadas a maioria das memórias físicas [e outras], sem o cheiro da comida da minha mãe, sem aquelas irritantes questões domésticas ou sem o conforto de estar com pessoas às quais todos os pedacinhos de mim já se habituaram há quase 21 anos.
Regressar é difícil porque nunca sinto que estou a regressar. É como uma viagem para uma terra de onde nunca fiz verdadeiramente parte. São as pessoas, são elas que me fazem sentir em casa. Mas essas ainda não estão cá. A residência está deserta e sinto falta das gargalhadas. Os que estão continuam debruçados sobre os seus livros de apontamentos e já nem sequer prestam atenção à televisão.
Regressar é difícil porque nunca sinto que estou a regressar. É como uma viagem para uma terra de onde nunca fiz verdadeiramente parte. São as pessoas, são elas que me fazem sentir em casa. Mas essas ainda não estão cá. A residência está deserta e sinto falta das gargalhadas. Os que estão continuam debruçados sobre os seus livros de apontamentos e já nem sequer prestam atenção à televisão.
Voltei e ainda não desfiz a mala. No início deste ano lectivo demorei um mês para a desfazer. Apenas a estante continua arrumada, com os livros endireitados e ordenados por tamanho. São aquelas duas prateleiras que me confortam nestes momentos. Quando tudo parece um caos, ali está a ordem. Ali estão parte das minhas memórias. São páginas gastas de tanto uso, pontas dobradas para me lembrar de palavras que marcaram e que não quero que fiquem perdidas – “Tinham sido colhidas à meia-noite, e entranhara-se nelas o frio do luar…” -, manchas onde ficaram guardadas lágrimas em silêncio, dedicatórias do tempo em que ainda não temíamos escrever nos livros.
Olho por detrás do meu ombro e vejo o fumo da caneca de chá quente. A cozinha estava deserta e fria, tão fria quanto a minha casa, onde temos de andar com cobertores por cima de nós e aquecedores ligados. Fiquei por lá, porque a televisão da sala já estava dominada por um grupo de estudantes de engenharia que se entretinham a ver o “Discovery” e uns quaisquer milagres da construção com o betão. A rapariga que estava sentada na mesa do fundo via uma “soup opera” lamechas de uma médica que tinha que cuidar do filho de uma paciente, porque ela tinha morrido e a médica sentia-se culpada. Não gosto de séries dessas mas fiquei a ver, porque tudo é melhor do que o silêncio do quarto. Consigo senti-lo mesmo com a música alto.
No primeiro dia, no dia em que regresso, nunca consigo dormir. Dou voltas e voltas na cama, mas o sono não aparece e acabo por fazer uma directa forçada. Não consigo fechar os olhos, sequer, e fixo a escuridão. Alguém está na sala de estudo ao lado do meu quarto a decorar nomes de doenças em voz alta. Ligo-me às suas palavras, mas logo que me farto e pego num livro que permanece comigo até amanhecer. E é aí que o rebuliço começa e que tudo corre mal. O primeiro dia é sempre o pior.
Mas depois vem o entardecer e o sono a apoderar-se dos meus sentidos. Gosto de subir a rua quando está nevoeiro, porque sinto que ninguém me pode ver e, logo, não pode ver como me sinto. Sinto o quadrado de chocolate derreter-se nos meus dedos e o nariz gelado por causa do frio. Aqui está sempre mais frio. “Estás bem agasalhada? Não te esqueças do cachecol, principalmente de manhã”, diz-me a mamã ao telefone, aos fins do dia, dia sim e dia não ou às vezes de dois em dois dias e, em épocas mais criticas, de semana a semana. Não lhe digo que não consegui acabar de comer a sandes que ela me fez para a viagem, com um pão demasiado grande para o conseguir trincar sem sentir que os maxilares estão quase deslocados, mas que comi os bombons que ela pôs no meu bolso enquanto ouvia aquela música em loop no mp3.
Tenho os dedos magoados do peso que levo, mas paro para fazer compras. Aqui, raramente as faço sozinha, espero pela Su, mas preciso de café e açúcar, que estão a acabar, e de bolachas de água e sal e de ovos. A senhora da caixa é mais simpática comigo do que com outros e não consegue evitar que os olhos não acompanhem a expressão carrancuda desde que eu voltei atrás, certo dia, porque ela me tinha dado troco a mais. Desde aí pergunta-me sempre como estou e eu minto sempre. "Estou bem...".
O quarto está atafulhado e não tenho espaço na mesa. Largo os sacos com as compras, como sempre comprei mais coisas do que era preciso, e pego nas chaves. Os meus pés já conhecem o caminho, apesar dos olhos se queixarem de sono e estarem vermelhos. Entro e sou brindada com o mesmo sorriso. Pergunta-me se é o mesmo de sempre e aí sinto-me nostálgica. É bom quando alguém decora os nossos hábitos. São os pequenos gestos que me animam, mesmo que esteja com o humor em estado deplorável, mas o professor foi compreensivo e estava com um sorriso estranhamente radiante. O meu chá chega, tenho de colocar a saqueta na chávena, é sempre assim, tem de ser a água por cima da saqueta e não o contrário senão não sabe tão bem. Logo a seguir oiço-a sussurrar para a colega “Bastante manteiguinha” e fico feliz, e as torradas chegam à mesa com o mesmo ar de sempre e o mesmo sabor de sempre, porque graças a deus eles não costumam mudar de manteiga. Ela chama-se dona Fátima, que engraçado, é o mesmo nome da senhora do café perto de casa, a 360 quilómetros daqui. São as duas simpáticas, mas eu prefiro este café do Porto, porque há sempre pessoas diferentes.
Não quero voltar para o quarto, mas a sala está muito barulhenta e quero descansar a mente. Acabo por subir e deitar-me com a música calma a ecoar-me nos ouvidos, em jeito de embalo. Não quero dormir, mas preciso, preferia ficar a escrever, porque ao escrever estou ocupada e as palavras aliviam-me o espírito.
Quem me dera que já estivessem aqui mais pessoas. Mesmo aquelas mais chatas.
"Happiness is a sad song..."
8 comments:
Texto magnifico. Não sei como consegues transformar a rotina e a tristeza em coisas tão... sei lá, nem tenho palavras. Fico à espera que escrevas um livro...
Entretanto, beijinho de melhoras...
Obrigado pela visita... Espero ver-te mais vezes...
Voltarei, com prazer... Sê Feliz!
Olá,
mais uma vez senti o «arrepio», mas q me faz sentir vivo e verificar q ainda existem pessoas como tu, sensiveis, atentas e vivas..
cheias de intensidade e emoções á flor da pele, és jovem mas com vibrações q agitam e me fazem reviver....
espero q logo,logo te sintas aconchegada de um calor, pelo menos o humano.
É um prazer,(poderia ) ouvir-te.
Mais uma vez obrigado pela tua visita ao meu lugar.
Beijo
queria dizer;
« é um prazer (poderia ) dizer
que ao ler , é a sensação como se te estivesse a ouvir.
Isso foi triste Luninha =(
Temos de ir ao café para me contares como foram as tuas férias...
Escuta o som mais puro da tua voz...
kiss:)
Passei para deixar cair uma chama de luz lá da minha lua para te guiar neste fim de semana...
Beijinho prateado com carinho
SOL
O regresso dói sempre... mas quando voltamos de onde viemos é sempre compensador!
Parabéns! Excelente texto*
PS: Madeira, madeirense :P os açorianos, tendencialmente substituem o ''o'' pelo ''u'' tipo.. ''açures'' em vez de açores.. (lol). É uma forma de distinguir! :D
beijinho
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